Já faz vários meses desde que o BDSM tomou o centro das atenções na
mídia. Com o lançamento do livro 50 Tons de Cinza, as práticas popularmente
conhecidas como sadomasoquistas ganharam novo destaque na internet, na
televisão e nas revistas. Os olhares curiosos, tanto daqueles que condenam o
BDSM quanto de quem despertou interesse pelas práticas, se voltam para as
demonstrações, produtos e notícias na mídia como fonte de informações a
respeito do tema – e é aí que mora o perigo.
No Guia Erógeno, sempre enfatizamos a importância da responsabilidade e
transparência entre os praticantes BDSM. Há vários tipos de acidentes que podem
acontecer, partindo desde casualidades físicas, que podem deixar sequelas permanentes
ou até mesmo risco de morte, até outros problemas de cunho emocional ou
psicológico, que podem ter efeitos devastadores em uma pessoa despreparada. É
por isso que não importa se as práticas são alguma forma complexa de Bondage ou
se resumem a palmadas durante o sexo: todo cuidado é necessário para evitar
acidentes.
No último sábado, a Globo exibiu uma cena na novela Amor à Vida em que
Perséfone, personagem interpretada por Fabiana Karla, acaba acidentalmente na
cama com um homem praticante de BDSM. Sem qualquer cuidado em explicar e
dialogar com Perséfone, o homem simplesmente a algema de surpresa e começa a
espancá-la com um chicote, ignorando completamente seus gritos de desespero e
de dor. Esse ato de extrema irresponsabilidade e violência foi banalizado e
transformado em uma situação cômica para a audiência, reforçando muitos
estigmas e equívocos que, além de ofensivos para quem pratica seriamente, são
extremamente perigosos.
O maior fundamento do BDSM, que diferencia suas práticas de situações de abuso, é a
consensualidade. Enquanto o sexo baunilha pode se tornar corriqueiro, uma
sessão de BDSM sempre requer preparo e planejamento: todos os envolvidos
precisam saber que tipos de práticas acontecerão ali, conhecer os limites de
cada parceiro e ter estabelecido palavras e gestos de segurança. Nada disso foi
apresentado na novela, que minimizou os riscos e uma situação de abuso a uma
simples questão de “azar” da personagem. Além disso, o local precisa ser
rigorosamente higienizado e os equipamentos precisam ser testados previamente,
o que passou bem longe de acontecer na televisão.
É preciso compreender que, enquanto o BDSM pode ser praticado de forma
relativamente segura, os perigos inerentes às suas práticas são reais. Não se
trata somente de um pequeno machucado no lugar errado ou de um desconforto que
leva alguns dias a mais para passar. Mesmo o chicote mais barato pode
prejudicar órgãos internos e cordas ou algemas de tecido podem prender a
circulação, causando problemas seríssimos ao submisso. Se os envolvidos na
sessão não possuem conhecimento, experiência prática e segurança sobre o que
estão fazendo, as chances de acontecerem acidentes são muito grandes. E não
basta o dominador dizer ao submisso que “está tudo sob controle”: todos
precisam estar completamente conscientes e esclarecidos dos riscos para poder
consentir. É por isso que é tão alarmante quando um dos canais midiáticos mais
influentes do planeta faz uma representação errônea do BDSM, sem qualquer
orientação ou ressalva para a audiência.
Já é muito preocupante que tantos casais inexperientes comecem a
praticar BDSM sem qualquer
instrução. Instrumentos pesados de couro ou metal são facilmente
acessíveis e, sem orientação, muita gente acaba envolvida em acidentes quando a
situação foge inevitavelmente do controle. O fato de que há toda uma cultura
endossando práticas abusivas e banalizando o conceito de consentimento
esclarecido é alarmante, especialmente considerando os perigos do BDSM. E se
acidentes causados por falta de conhecimento já são perigosos, há muitos falsos
dominadores que se aproveitam da ingenuidade alheia para abusar
e manipular suas vítimas, impondo práticas sem o consentimento prévio do
parceiro ou parceira ou até mesmo expondo sua vida íntima e destruindo a
privacidade.
A mídia é muito imprudente com o BDSM, principalmente porque não possui
interesse genuíno na subcultura e não está comprometida com o bem estar
público. O BDSM é utilizado como forma de humor e show de bizarrices, jamais
sendo apresentado com a seriedade e respeito que lhes são devidos. E, ironicamente,
os mesmos canais de comunicação que contribuem com a estigmatização do BDSM são
também aqueles que condenam seus praticantes, apresentados como pessoas
desviadas sexualmente, com transtornos mentais e perigosas para a população.
A maior massa de praticantes de BDSM são, na realidade, pessoas comuns,
que estudam, namoram, trabalham e viajam nas férias. Muitos curiosos sentem
vontade de experimentar, mas lhes faltam orientações acessíveis e confiáveis,
tanto de um ponto de vista prático, quanto teórico. A escassez de informações
em português é um grande problema para quem deseja ler a respeito e conhecer
melhor o BDSM. Para quem deseja começar a praticar, é muito dificil saber onde
procurar pessoas mais experientes, com quem aprender a praticar com segurança
ou tirar dúvidas.
E a situação fica ainda pior com a banalização reforçada pela mídia, que faz
com que a maioria das pessoas nem mesmo busquem as informações e orientações
necessárias.
A mídia precisa se responsabilizar pelos acidentes e abusos que
acontecem por conta de sua representação equivocada do BDSM. Negar ou condenar
a existência do BDSM também não funciona; é preciso conscientizar a população
de forma responsável e humanizada sobre as práticas fetichistas, atentando para
a necessidade de buscar parceiros confiáveis e cautelosos. Somente assim será
possível prevenir acidentes em grande escala; sem a compreensão básica da
importância do consentimento esclarecido e das medidas segurança, não apenas o
BDSM, mas qualquer prática sexual tem o potencial de se tornar perigosa.